A borboleta e o amplificador

A estreia desta Madama Butterfly no Teatro de São Carlos, revelou uma produção escorreita, com cantores à altura. Mas Puccini quer sempre mais.

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Madama Butterfly Daniel Rocha

Madama Butterfly começa com a apresentação da casa japonesa, com biombos e paredes deslizantes. O que ocultam os biombos? Não é só a paisagem lá fora, a colina dos arredores de Nagasaki. O que os biombos ocultam é um mundo, uma cultura que constrasta com a cultura americana. E, sobretudo, um mundo de sentimentos inacessíveis. Ou só acessíveis, talvez - era essa a busca de Puccini - através da música. A história de Butterfly podia resumir-se assim: "o tenente da Marinha americana abandona a gueixa com quem casou no Japão". Mas na verdade o fulcro do libreto é outro, abrir espaço para uma música dos sentimentos e dos grandes valores: o amor, a esperança, a honra.

O tenor espanhol Antonio Gandía foi Pinkerton, o americano, num papel razoavelmente bem desenhado. Tentou começar com energia (bem acompanhado por Mário João Alves no papel do casamenteiro Goro), mas as vozes afundaram-se na orquestra durante grande parte do primeiro acto. As palavras fúteis de Pinkerton do início são essenciais porque contrastam com os grandes sentimentos que virão. E ali está, desde o começo, de forma quase violenta a incompreensão e o preconceito perante a "outra cultura" - a japonesa - um dado fundamental para compreender esta Butterfly. Faltou a Pinkerton mais leviandade no primeiro acto e mais drama no final, apesar de o ter conseguido pelo menos nos arrepiantes gritos finais de "Butterfly! Butterfly!" e de, antes, ter sido bem sucedido no belíssimo dueto do primeiro acto com a gueixa Cio-cio-san. Já lá vamos à borboleta, que "os ocidentais espetam com alfinetes para que não volte a fugir".

Mas antes de Butterfly, que está no centro desta ópera, refiram-se as excelentes prestações de Luís Rodrigues (que conseguiu dar dimensão ao cônsul Sharpless) e sobretudo a excepcional actuação de Cátia Moreso no papel de Suzuki, a criada. Dois papéis secundários que são importantíssimos para o grande fito de Puccini de amplificar os sentimentos. E o amplificador é a música - mas é preciso Suzuki e Sharpless saberem que a esperança é desesperada, é preciso que eles olhem com compaixão o destino trágico de Butterfly, é preciso que eles saibam da verdade do seu amor e é preciso que saibam que tudo acabou antes de o saber Cio-cio-san. E nós, ouvintes e espectadores, vamos com eles até ao fim.

No papel principal esta produção estreada em 2007 (da Opera North, de Leeds) teve a sorte de contar com Hye-Youn Lee, soprano com grandes capacidades vocais e que teve alguns momentos brilhantes. Sem uma Butterfly com força, esta ópera não se pode aguentar. Mas é um trabalho difícil - como estar à altura, como dar conta de sentimentos tão simples e ao mesmo tempo tão gigantescos?

A soprano coreana conseguiu aguentar a falta de verosimilhança no início - afinal a delicada Butterfly só tem quinze anos quando é abençoada e renegada -, mas depois "americanizou-se" muito bem ao longo do segundo acto, com ajuda de uma encenação nunca genial, mas bastante clara e precisa nos gestos e na contracena dos actores.

No final, desenhou bem uma Butterfly quase enlouquecida, obsessiva, cultivando o amor como quem cultiva fanaticamente uma religião. E contudo, a música de Puccini parece dizer: "mais, sempre mais". E aí Hye-Youn Lee não seguiu o apelo de Puccini. Não arriscou levar a música consigo para todos os exageros, cortando abruptamente finais de frase em vez de nos fazer seguir o eco do coração que não está na partitura. E ser capaz de amplificar: transformar pouca energia  e poucos meios em muita energia e grandes sentimentos. Porque a amplificação dos sentimentos exige um canto que transborda. Transbordaram, sim, as cordas da Orquestra Sinfónica Portuguesa que, quando ganham espessura, ajudam as lágrimas a correr. E se um clarinete dissesse ainda outra coisa por cima?

Reflexo condicionado em pranto que Puccini consegue fazer subitamente, num rápido gesto musical que abre a comporta depois de acumular energia como numa barragem: o público, atravessado pela música, também quer "mais, sempre mais". Mesmo que nada aconteça - é só o amor iludido, a desesperada esperança, a honra em destroços. E nós com a delicada borboleta nas mãos, sem lhe poder tocar, enquanto a sombra da música atravessa os biombos.

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